Eu gostaria de companhia para conversar enquanto tenho meu cabelo cortado.
(ao meu amor)
“Alô, classificados do Jornal O Globo. Com quem eu falo?”
“Você fala com a Anna. Eu gostaria de fazer um anúncio.”
“Que tipo de anúncio?”
“Eu ofereço companhia.”
“Companhia? Mas companhia pra quê?”
“Para qualquer coisa. Tem alguns exemplos aqui, apoio moral, burocracias, projetos, tédio, não é prostituição, não. E não envolve dinheiro.”
“Hum.. Mas qual a finalidade do seu anúncio? Se não envolve dinheiro, seu anúncio não tem finalidade. Não podemos fazer um anúncio sem finalidade.”
“A finalidade é oferecer companhia.”
“Isso não está dentro dos padrões do jornal. Não posso fazer esse anúncio. Para casos desse tipo, você precisa vir presencialmente ao escritório.”
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Foi dessa maneira que a artista carioca Anna Costa e Silva iniciou o processo do trabalho Ofereço companhia para o qual ela espalharia anúncios em jornais e na internet declarando estar disponível para acompanhar qualquer pessoa em qualquer atividade. Após intensa dinâmica de agendamentos, foram realizados 33 encontros em um período de 21 dias. O esforço de divulgar o chamado em diferentes canais de comunicação fez com que grande parte dos participantes fosse formada por desconhecidos que solicitaram a companhia de Anna para as mais diversas ações, como rasgar cartas e contas antigas, cuidar de um bebê recém nascido, ajudar a organizar os cômodos de uma casa após o término de um relacionamento e conversar sobre vida e impermanência num cemitério.
A presente exposição é formada por um conjunto de vestígios e derivações de um trabalho imaterial definido exclusivamente pela sequência dos encontros: um vídeo que mostra a primeira tentativa de publicar o anúncio no jornal; o mesmo escrito à mão, publicado em um classificado impresso e em diferentes sites da internet; páginas retiradas de um caderno de anotações com as marcações e desmarcações na agenda de atividades durante os 21 dias; um conjunto de 33 fotos referentes a cada um dos encontros; 3 livros de artista compostos pelas interlocuções com o público curioso e interessado no trabalho por meio de mensagens no whatsapp, facebook e e-mail; e 40 monóculos nos quais podemos ler pequenos e intensos fragmentos das conversas ocorridas durante a ação.
Nos últimos anos, Anna Costa e Silva vem desenvolvendo trabalhos que se realizam como dinâmicas disruptivas de comunicação, relação e sociabilização que tensionam os processos de formação de sujeitos, laços e identidades. São trabalhos, portanto, que se realizam na dimensão da ética, por meio de operações que nos levam a questionar os valores basais de nossas formas de ser e de nos relacionar.
É importante que se perceba que o anúncio elaborado por Anna deixava claro não se tratar de uma ação remunerada, mas não explicitava sua condição de trabalho de arte. Muitos dos participantes solicitaram sua companhia sem questionar suas intenções. Outros, questionaram, foram informados sobre a natureza da ação e ainda assim permaneceram desconfiados. Mas, afinal, por que motivo o trabalho gerava tanto estranhamento? Por que nos causa incomodo a ideia de alguém abdicar da imagem de “ser humano independente” para assumir que desejamos ou precisamos da companhia dos outros? Por que causa desconfiança alguém oferecer o próprio tempo e força ao outro sem ganho financeiro?
Vivemos atualmente um tempo crítico para a cultura ocidental, quando observamos hesitantes o vácuo deixado pela inadequação e falência de alguns dos principais fundamentos da modernidade. Experimentamos diariamente a urgência de desenvolvermos o que estará no lugar, por exemplo, do individualismo, da racionalidade, da identidade, do utilitarismo, da predominância da dimensão econômica e da noção de futuro com progresso. Se percebemos os princípios humanistas em cheque e a crueldade ameaçando se tornar conduta hegemónica, é fundamental que estejamos ativamente criativos na intenção de preencher o vazio de valores. São férteis e generosas as iniciativas, como nos trabalhos de Anna, que criam situações extraordinárias que nos estimulam a criação de novas formas agir, com novos valores, no tempo presente. É quando entendemos que a transgressão ética criativa (não-perversa) do artista tem importante função social de expandir ou desfazer limitações.
Se os trabalhos nessa mostra fazem referência à ação acontecida anteriormente com os 33 participantes, também trazem a nós a lembrança de que é da natureza do “acompanhar” ser inapreensível, irrepresentável. Independente de quais eram as ações para as quais a companhia de Anna era solicitada (e a exposição não as revela em sua totalidade), elas eram realizadas entre Anna e o participante (não por Anna e o participante), e somente ali, na dimensão do afeto, dos fluxos de conteúdo subjetivo, o trabalho inicial existiu. A nós, restam os vestígios, os índices referenciais, o enunciado original e a noção de que o humano é mesmo um animal que, por vezes, precisa andar de mãos dadas.
Bernardo Mosqueira
Fevereiro de 2017