Da Iniciativa Utópica (Permissão em Cadência)
26.04 — 27.05.17
Artista: 

Enquanto você lê esse texto…

Enquanto escrevo esse texto, bebo um chá de Quebra-Pedra. Essa é uma planta medicinal, que cresce principalmente na estação chuvosa, em todo tipo de solo, sendo comum aparecer nas fendas das calçadas, terrenos baldios, quintais e jardins, em todos os estados brasileiros. Ela pode ser comprada em lojas de produtos naturais, farmácias de manipulação ou feiras livres, mas no meu caso, não fui eu quem foi atrás dela. Foi ela quem veio atrás de mim, brotando na minha jardineira, no meio do jardim que venho cultivando em casa. Ela apareceu e eu decidi deixá-la crescer para depois pensar se faria parte do meu jardim ou não.

Algumas das minhas plantas eu mesma escolhi e comprei. Outras plantei as sementes ou pequenas mudas e acompanhei o crescimento. Há ainda as que foram presentes de amigos, ou de quase desconhecidos. Dona Marlene, dona da casa onde me hospedei em Alto Paraíso ano passado, foi uma delas. Não me deixou sair de lá sem várias mudas de plantas — muitas das quais nem sei o nome, e fui aprendendo a cuidar a partir da observação de como reagiam à água, à luz e ao espaço. Plantas que foram da sua mãe, Maria, depois passaram a ser dela e hoje são minhas também. Quando chegaram em minha casa,  pareceram não gostar muito de início. Foram meses até que as mudas vingassem. Em vários momentos achei que tinham morrido e pensei em limpar aqueles vasos, plantar mudas novas. Um dia, de repente, quase ao mesmo tempo, elas vingaram. Vingaram como vingou uma história que vinha vivendo há meses, que em vários momentos também achei que tivesse morrido e que pensei em deixar para trás para dar lugar a caminhos novos. Agora todas estão fortes e crescendo: plantas e histórias.

Esse não é só um texto sobre plantas. Pode não parecer, mas é também uma reflexão sobre a produção que Rodrigo Garcia Dutra vem desenvolvendo e que se apresenta na exposição Da Iniciativa Utópica (Permissão em Cadência). Rodrigo e eu nascemos na mesma cidade — ele dois anos depois de mim. Estudamos no mesmo colégio, na mesma época, mas não nos conhecemos lá. Ou pelo menos não nos lembramos. Nos (re)encontramos anos mais tarde, dessa vez compartilhando o interesse pela arte. E agora, novamente, quando tivemos algumas conversas sobre os trabalhos que apresentaria nessa exposição. Em sua produção, Rodrigo revela seu interesse pelo caminho. Grande parte de seus trabalhos percorrem um caminho até ele: um prédio do qual foi vizinho por algum tempo, um objeto achado, um presente que recebe. Suas obras começam no seu encontro com o mundo e são como investigações sobre a natureza da forma, suas origens e desdobramentos, e os diversos modos como ela se desloca no tempo e no espaço. Rodrigo, que em si é um híbrido, fruto do deslocamento — é belga, português, negro e índio — pensa os deslocamentos de histórias, culturas, imagens, e referências.

A peça central da exposição faz alusão a uma sala de chá. No Japão, a tradição milenar de servir e beber chá também é chamada de Caminho do Chá. Muitos são os Caminhos do Japão. A princípio, o conceito de Caminho seria nada mais que um aperfeiçoamento artístico, a ser adquirido através de dedicada prática realizada sob a direção de um Mestre. Com o tempo, se reforçou na ideia de Caminho não a mera transmissão de algo estabelecido, acabado, maduro, e sim o contínuo vivenciar de algo que, apesar de ter uma história, permanece aberto, em crescimento, em desenvolvimento. No espaço da Galeria Superfície, uma sala de chá é sugerida. Os tablados de madeira lembram tatames japoneses, organizados de maneira próxima à imagem Casa Japonesa realizada por Lygia Pape em seu Livro da Arquitetura (1959–1963), e serão ativados por uma nova versão de uma cerimonia de chá verde concebida pelo artista. É também matéria desse trabalho, o deslocamento de espaço e tempo: desde o Japão milenar, passando pela arte neoconcreta de Lygia Pape no Rio de Janeiro na passagem dos anos 1950 para os 1960, até chegar em São Paulo, ano de 2017.

No meio desse caminho há ainda outras paradas no espaço e no tempo. A arquitetura tradicional japonesa, aqui representada pelo palácio Katsura na referência à sua fachada feita na pintura Sala de Chá, impressionou Walter Gropius, Le Corbusier e outros arquitetos europeus. Ao valorizar as características intrínsecas de cada material que compõe a construção, considerar essas peculiaridades como fatores importantes para o desenho arquitetônico, e apreciar, em especial, a forma natural, rejeitando com a artificialidade, esse palácio influenciou as mais arrojadas soluções propostas pela arquitetura moderna, não só dentro da Bauhaus, mas também no Brasil, com Oscar Niemeyer, em construções como os Palácios do Planalto e da Alvorada, em Brasília, o Edifício Copan e o prédio da Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera — também projeto de Oscar Niemeyer e que abriga um Pavilhão Japonês, que ocupa uma área de 7500m2 às margens do lago, e teve como referência para elaboração de seu projeto o Palácio Katsura.

“No Brasil há fios soltos num campo de possibilidades: por que não explorá-los?”.[1] Os trabalhos de Rodrigo apontam como a interrogação que Hélio Oiticica se colocou nos anos 1970 continua uma interessante imagem de como o Brasil lida com a própria história. Os objetos presentes na exposição reverberam essa discussão. Feitos em bronze, são reproduções de um maracá original indígena — uma espécie de chocalho, que é quase um denominador comum entre várias tribos, na América do Norte, Central e do Sul. Originalmente um objeto que participa de rituais sagrados, seu duplo reproduz sua forma, inclusive a superfície gravada com formas geométricas, mas está deslocado do contexto original. Ele deixa de ser um objeto sagrado para ser um objeto de arte. A discussão sobre o deslocamento de tempo e espaço aqui ganham um elemento a mais, que é a relação entre forma e ideia, remetendo às discussões de Platão.

Esses são alguns dos caminhos que Rodrigo Garcia Dutra e suas obras percorrem e propõem. São alguns dos caminhos que ele nos faz percorrer, revelando outros olhares e outros encontros possíveis — alguns nunca imaginados, alguns esquecidos ou apagados. Outras possibilidades de leitura da história (incluindo a história da arte) ou mesmo a construção de outras histórias possíveis. Enquanto você lê esse texto, na noite de abertura da exposição de Rodrigo Garcia Dutra, estou cruzando o céu, saindo do Rio de Janeiro rumo à Brasília. Estou indo caminhar a história, sem saber muito bem o que vem depois, respeitando a cadência, o ritmo próprio das coisas e das pessoas. Estamos todos exatamente onde deveríamos estar.

Fernanda Lopes
Abril de 2017

 

[1] OITICICA, Hélio. Sem referência de origem, 1972. apud FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 203.